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Era uma vez uma cidade que, por todos os seus valores, que à época eram só qualidades e boas novas, fora elevada a Capital Europeia da Cultura2. Neste evento, e com acções de revitalização, intensificaram-se memórias e demais valores que promoveram a identidade da cidade perante toda a Europa. No entanto, fruto da sua ambição, nascera uma Plataforma egoísta3 que se deparou com um velhinho Mercado4 a ocupar-lhe o lugar. Débil, aposentado e sem nada para fazer, o Mercado ansiava por uma nova vida, acreditando numa cooperação. A Plataforma era a sua esperança. Porém, jovem, ingénua e cheia de genica, esta ignorou tudo e todos do alto do seu esplendor, impondo-se ao Mercado. [Acabara-se a esperança.] Perante a indignação deste, e face à falta de bondade sentida, a Capital Europeia da Cultura havia condenado a Plataforma a crescer com a velha cara do Mercado. A transformação fora imediata! O destino da plataforma ficaria ligado ao de uma fachada encantada e viveriam juntos para sempre. A menos que alguém se esquecesse [do velhinho Mercado]! 

– Mas quem se esquecerá assim de mim? 

[Certamente, não seria esquecido.]

Envolto numa cidade encantada com um fabulado castelo, umas “bonitas praças de pedra”5 e um conjunto de tradições que cunhavam o património e as memórias de seus habitantes, acreditara-se que o Mercado iria permanecer na memória, à semelhança dos fragmentos da emblemática muralha. Saudosismo e delírio conjugar-se-iam tratando “o tempo vivido a partir de um passado continuado no presente”6. Eis a velha cara transformada em máscara! Essa máscara que iludiu o presente… Ainda me lembra os encontros e reencontros no Mercado! Os pregões das mulheres, os gritos das crianças, os cães que roubavam os chouriços das bancas… Depois, foi-se a vida, mas ficou a máscara: símbolo de uma memória que soube a pouco. Sem a dinâmica social prometida, resta-me a dúvida da recordação. Essa máscara que desiludiu o futuro. Afinal, sob a máscara existia uma nova cara: vaidosa e egoísta, erguia-se a Plataforma que descontextualizou a essência do Mercado. Afinal alguém se começara a esquecer!

Então, para quê manter a minha cara se vão esquecer-se de mim?

[Para lembrar o que ela viu.]

Numa época de compromissos, oportunidades não faltariam! Esperara-se, da Capital Europeia da Cultura, um impulso ao desenvolvimento da cidade, sem que se perdessem as suas memórias. Mas, no velhinho Mercado, a história fora outra: trocaram-no pela egoísta Plataforma, quando tanta coisa poderia ter acontecido… Imagina que das bancas se faziam cavaletes, palcos, laboratórios; imagina que as galerias tinham camarotes, expositores e olarias; imagina os pregões dos artistas a chamarem a rua; os catraios a espreitarem pelas portas entreabertas; os velhotes à sombra dos placards; imagina fios e grelhas, projectores e luzes, caixas, caixinhas e caixotes, imagina… Imagina! Era só abrir as portas! Ou então, ia tudo abaixo! […] A realidade fora bem mais cruel: transformou memória em satisfação cultural. Venderam o Mercado ao progresso, para lhe dar vida, mas esqueceram-se de lhe reanimar a alma que estava apagada na cidade. Mas isto não acontecia só aqui: a cultura andava, por todo o lado, a ser produzida em série e vendida ao desbarato. A transformação prometia ser uma boa intenção, até se tornar num negócio apetecível que banalizava a memória. [Mas de boas intenções está o inferno cheio!] Ainda por cima, eram outros tempos: havia pouco dinheiro, e era preciso ter cuidado onde e como se gastava o pouco que havia. Tempos de crise... [Não fossem os patrocínios, e a história teria sido outra!] Aqui o peixe era graúdo, mas o negócio só encheu os pratos de alguns. O que prometera ser uma oportunidade para muitos, ficara para os do costume. Nem os mais pequenos lá chegavam – nem aqui, nem em lado nenhum! E gente não faltava: de canudo ou à espera dele, a crise não dava hipótese de emprego ou trabalho. Era vê-los aí a pedinchar, ou a dar à sola! Em tempos de poupança, dever-se-ia aproveitar o que se tinha: esses “engenheiros”7 que por cá andavam esperavam oportunidades, trabalhos ou negócios. Mas, já se sabe que nisto dos grandes negócios, o que interessa mesmo é o dinheiro. Às vezes esquecem-se pessoas, memórias e demais valores… Enfim… Aqui ficara pouco mais do que o negócio! Da venda de cultura explodira a Plataforma, e do velhinho mercado restara a nostalgia. Uma nostalgia sem memória.

– Já estou mesmo a ser esquecido, não é?

[Pois… Pelos vistos já não interessa saber quem és.]

Num país de fortes identidades, onde a memória do lugar é respeitada, era preciso mais que um simples teorema. Esperara-se mais. Muito mais! Não se devia, à partida, excluir o desperdício. A velhinha memória poderia ter sido reciclada. Mas não! Livraram-se dela. Do desperdício ficara a máscara. Da máscara perdera-se a memória. Sem memória, restara o lixo. 

–  Já fui esquecido…

[…]

Enfim, desperdícios… A cidade até precisava de investimento, mas ceder a um capricho?! [pfff…] Ainda por cima um capricho que, no final, não trouxe nada de novo. A quantidade de ‘plataformas’ que por aí havia! [Não faz sentido!] Tantas vontades, tantas memórias, tantas vidas, tantas pessoas, tantos ‘canudos’! E nada… Nada foi exposto! Nada foi discutido! Nada foi criticado! Ninguém foi ouvido… Afinal o lixo era as pessoas.

 –  Mas olha… O que nasce torto jamais se endireita!

[Conta-me histórias.] |

 

 

1  Centenário do início da construção da Plataforma das Artes e da Criatividade – Centro de Arte José de Guimarães.

 

2 Guimarães 2012, iniciativa da União Europeia.

 

3 Plataforma das Artes e da Criatividade – Centro de Arte José de Guimarães (2010-), da autoria de Pitágoras Arquitectos, Ldª.

 

4 Antigo Mercado Municipal de Guimarães (1927-1947), da autoria do arquitecto José Marques da Silva.

 

5 Vídeo promocional Guimarães 2012 CEC (2011). [Em linha.] Disponível em http://www.guimaraes2012.pt/index.php?cat=15. (consult. em 9 Out. 2011).

 

6 Marluci Menezes. Da idealização do património urbano à construção de um projecto social de salvaguarda e reabilitação. in Cultura light. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto; Departamento de Ciências e Técnicas do Património, 2005, p. 121.

 

7 Expressão popular para designar licenciados (“Os que não são doutores, são engenheiros!”), sendo muito comum para nomear o arquitecto


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